TEXTO DISSERTATIVO ARGUMENTANDO A RELAÇÃO
COLONIZADOR VERSUS COLONIZADO CONFORME O FILME:
“COMO ERA GOSTOSO O MEU FRANCÊS”, DE NELSON PEREIRA DOS SANTOS E O ROMANCE: “IRACEMA”, DE JOSÉ DE ALENCAR”*
Aricelma Costa Ibiapina
O filme Como era gostoso o meu francês, é um longa-metragem que toma o índio como tema, e remete-nos a fazer um paralelo à obra de José de Alencar, sobretudo Iracema o que significa mais da metade da produção
Em “Iracema”, o que está em questão em torno dos pares romântico da índia Tabajara Iracema e o fidalgo português Martim Soares Moreno, é a constituição da nação. O indianismo de José de Alencar vai desempenhar um papel fundamental na construção da identidade brasileira, exigência gerada pela ruptura da colônia com a metrópole.
Os índios têm um papel fundamental na moldagem da brasilidade no imaginário pós-colonial, ou seja, o papel de rebelde, já que era o habitante originário do território invadido pelo colonizador; o índio de José de Alencar entra em íntima comunhão com o colonizador. Iracema faz parte do grupo de índios, colocada na categoria de índios bons; eles sucumbem de paixão por brancos, sentimento estranho ao seu universo, colocando-se à mercê dos mesmos, numa condição de espécie de servidão voluntária.
Iracema chega mesmo a se voltar contra seu povo para proteger e se unir a Martim, inimigo dos Tabajaras. Esta é a índia que entra em comunhão com o colonizador e que vai constituir a nação brasileira; a união de Iracema e Martim na floresta, que gera a brasilidade, simboliza o cruzamento de uma determinada cultura com uma natureza domesticada.
Não se fala em violência do colonizador face às populações indígenas que habitavam o Novo Mundo. A prosa de Alencar não é uma crônica realista, não tendo, por conseguinte, nenhuma preocupação com a verossimilhança: ela tece o mito. Os conflitos entre o colonizador e os índios são atribuídos à ferocidade de alguns povos indígenas, ferocidade essa reconhecida por Iracema.
Iracema é a representação do índio de alma branca: seu encontro com o colonizador só é possível porque ela tem consciência de sua inferioridade e respeita a hierarquia quando se une ao branco.
Iracema não podendo branquear o corpo, se dispõe a uma espécie de branqueamento cultural e com isso se habilita à união com o colonizador, contribuindo para a formação de uma nação mestiça, que se quer cada dia mais branca.
O paradigma romântico mantém sua hegemonia durante grande parte do século XX, permanecendo como substrato até mesmo das visões contida no filme “Como era gostoso o meu francês” que não se constituem em versões de José de Alencar, o qual, entretanto, não apresenta modificações substanciais.
Sintetizando o perfil do índio da ficção cinematográfica, antes de qualquer coisa é um solo comum a idéia de que os índios são seres selvagens, primitivos, ainda na infância da humanidade; faz-se distinção entre o mau e o bom selvagem, sendo que este último é aquele que assume uma condição de inferioridade face ao branco, que se dispõe a abrir mão de sua cultura e absorver a cultura do colonizador, mantendo-se apenas como uma raça distinta que contribui para a formação da nação.
No filme não há a preocupação em retratar grupos indígenas específicos, em mostrar a diversidade das culturas indígenas, mas sim falar do índio genérico. Mesmo quando são mencionados determinados grupos indígenas, esse fato não passa de um efeito de superfície, uma vez que o nome do grupo acaba reduzido a um rótulo sem qualquer conteúdo. Não se recorre ao conhecimento sobre o universo dos diversos povos indígenas brasileiros, acumulado pela antropologia, e a caracterização dos índios, é completamente distanciada da realidade.
A idéia de que os índios são seres primitivos vai se cristalizando na sociedade brasileira como um todo, e no ambiente cinematográfico: a noção de primitivo, que se contrapõe à sua questão central: a modernidade. Ser primitivo, qualidade atribuída aos índios significa falta de avanço em termos da tecnologia, critério usado pela visão para distinguir as sociedades civilizadas das primitivas, sendo que estas últimas em algum momento de sua trajetória alcançariam o estágio da civilização. Já a teoria elaborada pelo filme se mostra mais perversa, pois considera o primitivismo algo que está no nível da essência, impossível, pois de ser superado.
“Como era gostoso o meu francês”, se constitui indiscutivelmente num marco no que diz respeito à representação dos índios pelo cinema brasileiro. O filme polemiza a visão dos povos indígenas disseminada na sociedade, e incorporada por nossa cinematografia, sugerindo uma nova forma de pensar a relação entre índios e europeus no início do processo de colonização e, por extensão, ao longo de nossa história.
O filme fornece ao espectador informações capazes de pelo menos embaralhar a visão corrente quanto à barbaridade e falta de lógica da ação dos índios, mostrando sua vida social, sua música, seus costumes, buscando envolvê-lo com a lógica tribal, convidando-o a partilhar suas convicções guerreiras e sua forma harmoniosa e lúdica de inserção no meio ambiente exuberante. É o primeiro longa-metragem brasileiro de ficção que tem a preocupação de entrar no universo indígena, mais especificamente Tupinambá dando ao espectador elementos que lhe permitem entender a lógica e razões do outro. A força do filme no sentido de possibilitar essa adesão a ponto de vista dos Tupinambás, reside, em grande medida, no trabalho do narrador, no modo como busca o envolvimento do espectador através da retórica narrativa, onde se inscreve a lógica tribal.
Quanto à imagem do índio no longa-metragem brasileiro de ficção, se pode falar em antes e depois de “Como era gostoso o meu francês”. Enquanto Brasil ano 2005, ao se valer do significante “índio” para conotar primitivismo, acaba reiterando a visão negativa de nossa origem indígena, O filme festeja nossa ascendência Tupinambá e recorre para tratar da colonização, a esse grupo indígena aguerrido, que, na verdade, não se deixou colonizar. Em sua leitura da questão da identidade, O Meu Francês, afinado com o Modernismo, se filia à linhagem Tupinambá e se apazigua com nossa origem primitiva.
A relação de afeto entre o colonizador e o colonizado trata-se da impossibilidade de existência do próprio sentimento em si, em função das normas e hábitos rígidos que regem a sociedade dos tupinambás: uma índia não se apaixonaria pelo inimigo que irá devorar.
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